21 de julho de 2016

Escolas de Escrita: inspirações italianas

Seguindo a série de apresentação de algumas das escolas de escritores que nos inspiram, nesta semana vamos compartilhar com vocês um pouco sobre a Holden e a Omero, situadas na Itália. Assim como os espanhóis, sobre cujas escolas escrevemos no post anterior, os italianos possuem uma crescente disseminação do ensino e da pesquisa da prática literária, associada, sem dúvida, à força de sua tradição artística, permeada por academias, institutos e movimentos estéticos que há milênios são fonte de inspiração para todo o mundo ocidental. 


A Scuola Holden, que tem como um dos fundadores o escritor Alessandro Baricco, fica na cidade de Turim e além do foco no ensino da narrativa, também possui cursos de artes performativas. Foi criada em 1994 por um grupo de quatro amigos de trinta e poucos anos que sentia falta de um espaço de renovação para se pensar o destino da literatura e dos escritores no fim do século XX. Com essa vocação jovem, o nome da escola faz alusão ao personagem ícone de “O apanhador no campo de Centeio” (J.D. Salinger), Holden Caufield. Como brincam os fundadores, seu objetivo era criar uma instituição de ensino da qual Holden nunca seria expulso. Desde 2013, o centro ocupa  o espaço de uma antiga fábrica de bombas. O que era um lugar destinado à guerra, hoje acolhe centenas de pessoas que lutam pela sobrevivência da poesia – em amplo sentido. Para integrar a formação oficial de storytelling, que tem duração de dois anos, o aluno da Holden precisa passar por um processo seletivo, que consiste no preenchimento de um formulário, onde deve contar a sua história. O foco dessa formação são os jovens menores de 30 anos – para os que já ultrapassaram essa idade, a escola tem uma série de programas especiais e cursos livres, oferecidos em diversas cidades além de Turim.

A Scuola di Scrittura Omero foi a primeira do gênero a ser fundada na Itália, em 1988. Localizada em Roma, a Omero acolhe todos os interessados em escrever melhor,  e não apenas os que desejam ser escritores. O foco é o texto – seja ele para televisão, cinema, roteiro, ou mesmo para quem quer ser jornalista ou trabalhar como editor. Coerente com isso é o fato de que além dos cursos a Omero publica uma revista – a Mag O. - onde dá espaço para as produções de seus alunos e também realiza trabalho editorial. Uma das características mais apaixonantes dessa escola é justamente sua aposta na diversidade. Ela oferece módulos de ensino que vão desde a criação de histórias a partir do tarô, passando por cursos de escrita publicitária até uma colônia de férias para imersão na escrita! 

Esse trabalho de amplo espectro da Holden e da Omero dialogam com o desejo da Luminara em associar cada vez mais o trabalho editorial aos eixos de ensino e pesquisa. O projeto ainda está apenas em nossos corações e mentes - além de algumas anotações na agenda - mas deve entrar em vigor a partir de 2017. Grupos de pesquisa, cursos livres, saraus, produção coletiva de conhecimento – estes devem ser os elementos que comporão a maior parte de nosso trabalho futuro. Os livros como fundamento, mas os encontros e as trocas como núcleo dinâmico. Faz parte desse desejo reconhecer que o texto condensado no livro é apenas um excerto da vida, uma parte sintética daquilo que compartilhamos e levamos como repertório.  O sonho de fazer da Luminara Editoral um centro que agregue outras formas de produção de conhecimento é nossa maneira de reconhecer que: saber ler não basta, é preciso saber dialogar. 

1 de julho de 2016

Coincidências quixotescas


Certas coincidências ganham tanto relevo na trajetória de nossas vidas que reinauguram o sentido original da palavra coincidir: do latim coincidere - concordar, ocorrer junto. O ano de 2016 marca o quadricentenário da morte de Miguel de Cervantes Saavedra (1547 - 1616), autor de "El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha", ou simplesmente Don Quixote, patrono do romance ocidental, ícone do idioma e da literatura castelllana, aquele que dá nome ao órgão mais importante da política cultural exterior da Coroa Espanhola – Instituto Cervantes. Este também é o ano em que eu - que não sou nada, nunca serei nada, mas tenho em mim todos os sonhos do mundo - vou estudar na Universidade de Salamanca (USAL), onde, reza a lenda, teria estudado Cervantes e um certo moço que ficou louco ao ler demasiados romances de cavalaria.

O trajeto percorrido pelo cavaleiro da triste figura e seu escudeiro não inclui as terras de Salamanca, mas a tradição popular insiste em afirmar que as personagens passaram por ali (e seguem passando). A razão mais provável – conjecturo eu desde o outro lado do oceano – é que a Universidade que ali se encontra é a mais antiga da Europa. De tradição católica, medieval, cavalheiresca, a USAL representava originalmente o suprassumo educacional, a máxima instituição pedagógica, daquilo que Cervantes ironiza em sua obra-prima. Pois enquanto o Quixote era escrito, a Espanha ingressava na era moderna. Com dificuldades em administrar as colônias, corrupção interna, disputas de poder, conflitos religiosos e violência de Estado, o “Império em que o sol nunca se põe” era lugar de contradições e violência. O período em que o romance de cavaleria era o insigne literário da luta dos cristão contra os “infiéis”, a glorificação da violência que “salva o reino” estava em fase de transição. Cervantes criou, portanto, uma obra de ficção que capta a incerteza e a instabilidade que pairava sobre sua pátria. A tolice fantasiosa de seu protagonista é a face literária de uma sociedade e que já não tem tanta certeza de seus fins de conquista e riqueza e seus meios de opressão e violência.

Nesse sentido, Don Quixote não é considerado o primeiro romance da literatura espanhola (e por muitos também da literatura universal) apenas por sua estrutura estética, seus recursos narrativos. E sim por também reter o caldo cultural que naquele preciso momento histórico gerava os frutos da Idade Moderna, pelo menos esta que teria efeitos diretos sobre nós, americanos, latino-americanos. O positivo disso tudo é pensar que a pátria hispânica acolheu como símbolo uma obra que não glorifica a violência de Estado, o poder do Império, o afã conquistador. O negativo é pensar que esses elementos ainda sobreviveram e se multiplicaram no modo de colonização do nosso continente, por muito tempo além da morte de Cervantes.


Do século XVI ao XXI, a auto-ironia cervantina foi mal compreendida, depois aceita, a seguir desenvolvida em culpa e necessidade de retribuição. Hoje a Espanha é um dos países europeus que mais possui centros de estudos sobre a América Latina, que mais concede bolsas de estudos para alunos daqui, que possui uma das diplomacias culturais pioneiras e mais desenvolvidas. Interesse estratégico, necessidade de boas relações com seus colegas hispanohablantes do sul e mesmo uma nova forma de influência política: tudo isso está na origem do Instituto Cervantes e dos demais organismos de política cultural exterior da Espanha. 

Entretanto, gosto de pensar que ali existe, igualmente, autocrítica e o reconhecimento de que é possível desenvolver relações mais lúdicas, pacíficas, construtivas, entre sujeitos e povos – como reconhecia aquele autor que dá nome ao Instituto. Nesse sentido, a escolha dos Estudos Latino-americanos, que irei cursar Universidade de Salamanca com dinheiro da Coroa Espanhola, é uma maneira de ser quixotesca: não só cultivando sonhos e ilusões românticas (como a criatura Quixote), mas também a crítica e a auto-ironia (como o criador Cervantes).