Certas
coincidências ganham tanto relevo na trajetória de nossas vidas que
reinauguram o sentido original da palavra coincidir: do latim
coincidere
-
concordar, ocorrer junto.
O ano de 2016 marca o quadricentenário da morte de Miguel de
Cervantes Saavedra (1547 - 1616), autor de "El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha", ou simplesmente Don Quixote, patrono do
romance ocidental, ícone do idioma e da literatura castelllana,
aquele que dá nome ao órgão mais importante da política cultural
exterior da Coroa Espanhola – Instituto Cervantes. Este também é
o ano em que eu - que não sou nada, nunca serei nada, mas tenho em
mim todos os sonhos do mundo - vou estudar na Universidade de
Salamanca (USAL), onde, reza a lenda, teria estudado Cervantes e um
certo moço que ficou louco ao ler demasiados romances de cavalaria.
O
trajeto percorrido pelo cavaleiro da triste figura e seu escudeiro
não inclui as terras de Salamanca, mas a tradição popular insiste
em afirmar que as personagens passaram por ali (e seguem passando). A
razão mais provável – conjecturo eu desde o outro lado do oceano
– é que a Universidade que ali se encontra é a mais antiga da
Europa. De tradição católica, medieval, cavalheiresca, a USAL
representava originalmente o suprassumo educacional, a máxima
instituição pedagógica, daquilo que Cervantes ironiza em sua
obra-prima. Pois
enquanto o Quixote era escrito, a Espanha ingressava na era moderna.
Com dificuldades
em administrar as colônias, corrupção interna, disputas de poder,
conflitos religiosos e violência de Estado, o “Império em que o
sol nunca se põe” era lugar de contradições e violência. O
período em que o romance de cavaleria era o insigne literário da
luta dos cristão contra os “infiéis”, a glorificação da
violência que “salva o reino” estava em fase de transição.
Cervantes criou, portanto, uma obra de ficção que capta a incerteza
e a instabilidade que pairava sobre sua pátria. A tolice fantasiosa de seu protagonista é a face literária de uma sociedade e que já não tem
tanta certeza de seus fins de conquista e riqueza e seus meios de
opressão e violência.
Nesse
sentido, Don Quixote não é considerado o primeiro romance da
literatura espanhola (e por muitos também da literatura universal) apenas por sua estrutura estética, seus recursos narrativos. E sim
por também reter o caldo cultural que naquele preciso momento
histórico gerava os frutos da Idade Moderna, pelo menos esta que
teria efeitos diretos sobre nós, americanos, latino-americanos. O
positivo disso tudo é pensar que a pátria hispânica acolheu como
símbolo uma obra que não glorifica a violência de Estado, o poder
do Império, o afã conquistador. O negativo é pensar que esses elementos ainda sobreviveram e se multiplicaram no modo de colonização do nosso
continente, por muito tempo além da morte de Cervantes.
Do
século XVI ao XXI, a auto-ironia cervantina foi mal compreendida, depois aceita,
a seguir desenvolvida em culpa e necessidade de retribuição. Hoje a
Espanha é um dos países europeus que mais possui centros de estudos
sobre a América Latina, que mais concede bolsas de estudos para
alunos daqui, que possui uma das diplomacias culturais pioneiras e
mais desenvolvidas. Interesse estratégico, necessidade de boas
relações com seus colegas hispanohablantes do sul e mesmo uma nova
forma de influência política: tudo isso está na origem do
Instituto Cervantes e dos demais organismos de política cultural
exterior da Espanha.
Entretanto, gosto de pensar que ali existe, igualmente, autocrítica e o reconhecimento de que é possível desenvolver relações
mais lúdicas, pacíficas, construtivas, entre sujeitos e povos –
como reconhecia aquele autor que dá nome ao Instituto. Nesse
sentido, a escolha dos Estudos Latino-americanos, que irei cursar Universidade
de Salamanca com dinheiro da Coroa Espanhola, é uma maneira de ser quixotesca: não só cultivando sonhos e ilusões românticas (como a
criatura Quixote), mas também a crítica e a auto-ironia (como o
criador Cervantes).
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