1 de julho de 2016

Coincidências quixotescas


Certas coincidências ganham tanto relevo na trajetória de nossas vidas que reinauguram o sentido original da palavra coincidir: do latim coincidere - concordar, ocorrer junto. O ano de 2016 marca o quadricentenário da morte de Miguel de Cervantes Saavedra (1547 - 1616), autor de "El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha", ou simplesmente Don Quixote, patrono do romance ocidental, ícone do idioma e da literatura castelllana, aquele que dá nome ao órgão mais importante da política cultural exterior da Coroa Espanhola – Instituto Cervantes. Este também é o ano em que eu - que não sou nada, nunca serei nada, mas tenho em mim todos os sonhos do mundo - vou estudar na Universidade de Salamanca (USAL), onde, reza a lenda, teria estudado Cervantes e um certo moço que ficou louco ao ler demasiados romances de cavalaria.

O trajeto percorrido pelo cavaleiro da triste figura e seu escudeiro não inclui as terras de Salamanca, mas a tradição popular insiste em afirmar que as personagens passaram por ali (e seguem passando). A razão mais provável – conjecturo eu desde o outro lado do oceano – é que a Universidade que ali se encontra é a mais antiga da Europa. De tradição católica, medieval, cavalheiresca, a USAL representava originalmente o suprassumo educacional, a máxima instituição pedagógica, daquilo que Cervantes ironiza em sua obra-prima. Pois enquanto o Quixote era escrito, a Espanha ingressava na era moderna. Com dificuldades em administrar as colônias, corrupção interna, disputas de poder, conflitos religiosos e violência de Estado, o “Império em que o sol nunca se põe” era lugar de contradições e violência. O período em que o romance de cavaleria era o insigne literário da luta dos cristão contra os “infiéis”, a glorificação da violência que “salva o reino” estava em fase de transição. Cervantes criou, portanto, uma obra de ficção que capta a incerteza e a instabilidade que pairava sobre sua pátria. A tolice fantasiosa de seu protagonista é a face literária de uma sociedade e que já não tem tanta certeza de seus fins de conquista e riqueza e seus meios de opressão e violência.

Nesse sentido, Don Quixote não é considerado o primeiro romance da literatura espanhola (e por muitos também da literatura universal) apenas por sua estrutura estética, seus recursos narrativos. E sim por também reter o caldo cultural que naquele preciso momento histórico gerava os frutos da Idade Moderna, pelo menos esta que teria efeitos diretos sobre nós, americanos, latino-americanos. O positivo disso tudo é pensar que a pátria hispânica acolheu como símbolo uma obra que não glorifica a violência de Estado, o poder do Império, o afã conquistador. O negativo é pensar que esses elementos ainda sobreviveram e se multiplicaram no modo de colonização do nosso continente, por muito tempo além da morte de Cervantes.


Do século XVI ao XXI, a auto-ironia cervantina foi mal compreendida, depois aceita, a seguir desenvolvida em culpa e necessidade de retribuição. Hoje a Espanha é um dos países europeus que mais possui centros de estudos sobre a América Latina, que mais concede bolsas de estudos para alunos daqui, que possui uma das diplomacias culturais pioneiras e mais desenvolvidas. Interesse estratégico, necessidade de boas relações com seus colegas hispanohablantes do sul e mesmo uma nova forma de influência política: tudo isso está na origem do Instituto Cervantes e dos demais organismos de política cultural exterior da Espanha. 

Entretanto, gosto de pensar que ali existe, igualmente, autocrítica e o reconhecimento de que é possível desenvolver relações mais lúdicas, pacíficas, construtivas, entre sujeitos e povos – como reconhecia aquele autor que dá nome ao Instituto. Nesse sentido, a escolha dos Estudos Latino-americanos, que irei cursar Universidade de Salamanca com dinheiro da Coroa Espanhola, é uma maneira de ser quixotesca: não só cultivando sonhos e ilusões românticas (como a criatura Quixote), mas também a crítica e a auto-ironia (como o criador Cervantes).

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe aqui suas idéias e sugestões!