Sociólogos
e historiadores consideram o século XXI como aquele em que as
cidades retomaram para si uma relevância política que se assemelha
à que tinham antes da formação do Estado moderno. A chamada
emergência da cidade
está associada ao fenômeno da glocalização
– o fato de que o poder do Estado-Nação, juntamente com suas
noções de fronteira, território e cultura nacional, está sendo
posto duplamente em cheque. Nas grandes questões políticas
contemporâneas como direitos das minorias, migrações, superação
da pobreza, diversidade cultural e desenvolvimento sustentável, há
uma colaboração entre o local e o internacional na revisão e
transformação das noções tradicionais da política associadas à
soberania estatal. Esta é uma das perspectivas pela qual podemos
entender o contexto contemporâneo e, portanto, esse espaço-tempo em
que se desenvolve a literatura brasileira das últimas décadas.
Se
perdemos em prazer estético ao reduzir um texto literário a uma
interpretação sociológica; também reduzimos nossa percepção e
capacidade crítica ao desconsiderar o panorama sociocultural em que
uma obra está inserida. Ainda mais quando estamos tratando do nosso
tempo.
“Do
trauma à trama: o espaço urbano na literatura brasileira
contemporânea”
– segundo livro da série Limiar, com realização da Luminara
Editorial e organização do Prof. Dr. Ricardo Barberena (PUCRS) e da
Prof. Dra. Regina Dalcastagnè (UnB) – reúne artigos que têm como
grande trunfo dar conta do nosso
tempo,
com um olhar engajado neste duplo valor da literatura. Neles, a
riqueza das análises sobre as particularidades da forma literária
convive com o interesse crítico pela realidade sociocultural em
diálogo com as obras.
A
seleção dos artigos feita por Barberena e Dalcastagnè
possui uma coesão que, não obstante as particularidades de cada
autor, é dada pela conversa entre o literário e o social, em sua
problematização do espaço urbano. Além
dos artigos assinados pelos organizadores, o livro é composto por
dez textos de pesquisadores nacionais e internacionais, são eles:
Luciene Azevedo (UFBA), Sophia
Beal (Universidade de Minnesota), Milton
Colonetti (PUCRS), Luciana Paiva Coronel (FURG), Ângela Maria Dias
(UFF), Alexandre Faria (UFJF), Friedrich Frosch (Universidade de
Viena), Jeremy Lehnen (Universidade do Novo México), Lucía Tennina
(Universidade de Buenos Aires), Lúcia Osana Zolin (UEM).
O corpus
das análises é a literatura brasileira contemporânea, mas o seu
escopo tem a natureza glocal
do
século XXI, dando mostras de que as cidades são mais que cenário
de narrativas, canções, poemas e vidas – são entidades
políticas, sociais e culturais em constante redesenho, devido ao
trânsito e ao discurso dos sujeitos.
Os assuntos são
diversos: literatura marginal, autobiografia e migração, crise da
masculinidade, autoria feminina, escrita do cárcere,
representatividade das vozes de mulheres na periferia, o espaço
urbano de Brasília, o deslocamento como estratégia narrativa e
reflexo da instabilidade do sujeito, os atores políticos em jogo na
definição do sistema literário. A essa diversidade temática
corresponde, porém, uma mesma preocupação estética e crítica com
a potência do texto literário para a representação e a
constituição das geografias sociais.
Como
escreve o professor Barberena, “refletir sobre os traumas de hoje é
pensar sobre os traumas do transitar”. Assim sendo, problematizar o
espaço urbano na literatura contemporânea é questionar a própria
noção de espaço – do local ao global, passando pelo nacional –
e, portanto de fronteiras, limites, possibilidades e cerceamentos da
mobilidade e do trânsito. De que modo os recursos estéticos da
forma literária dão vazão a esses fenômenos do contemporâneo? De
que maneiras a literatura contemporânea se transforma pari
passu
com as transformações do mundo, num jogo de retroalimentação? Não
há resposta para isso que não seja um devir: cada um dos artigos
deste livro é como uma caminhada pelo espaço (urbano) da literatura
brasileira contemporânea – e este, não custa lembrar, só vai se
construindo à medida que caminhamos.
Resenha por Giulia Barão
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Deixe aqui suas idéias e sugestões!