1 de março de 2016

“Do trauma à trama: o espaço urbano na literatura brasileira contemporânea”


Sociólogos e historiadores consideram o século XXI como aquele em que as cidades retomaram para si uma relevância política que se assemelha à que tinham antes da formação do Estado moderno. A chamada emergência da cidade está associada ao fenômeno da glocalização – o fato de que o poder do Estado-Nação, juntamente com suas noções de fronteira, território e cultura nacional, está sendo posto duplamente em cheque. Nas grandes questões políticas contemporâneas como direitos das minorias, migrações, superação da pobreza, diversidade cultural e desenvolvimento sustentável, há uma colaboração entre o local e o internacional na revisão e transformação das noções tradicionais da política associadas à soberania estatal. Esta é uma das perspectivas pela qual podemos entender o contexto contemporâneo e, portanto, esse espaço-tempo em que se desenvolve a literatura brasileira das últimas décadas.

Se perdemos em prazer estético ao reduzir um texto literário a uma interpretação sociológica; também reduzimos nossa percepção e capacidade crítica ao desconsiderar o panorama sociocultural em que uma obra está inserida. Ainda mais quando estamos tratando do nosso tempo. “Do trauma à trama: o espaço urbano na literatura brasileira contemporânea” – segundo livro da série Limiar, com realização da Luminara Editorial e organização do Prof. Dr. Ricardo Barberena (PUCRS) e da Prof. Dra. Regina Dalcastagnè (UnB) – reúne artigos que têm como grande trunfo dar conta do nosso tempo, com um olhar engajado neste duplo valor da literatura. Neles, a riqueza das análises sobre as particularidades da forma literária convive com o interesse crítico pela realidade sociocultural em diálogo com as obras.

A seleção dos artigos feita por Barberena e Dalcastagnè possui uma coesão que, não obstante as particularidades de cada autor, é dada pela conversa entre o literário e o social, em sua problematização do espaço urbano. Além dos artigos assinados pelos organizadores, o livro é composto por dez textos de pesquisadores nacionais e internacionais, são eles: Luciene Azevedo (UFBA), Sophia Beal (Universidade de Minnesota), Milton Colonetti (PUCRS), Luciana Paiva Coronel (FURG), Ângela Maria Dias (UFF), Alexandre Faria (UFJF), Friedrich Frosch (Universidade de Viena), Jeremy Lehnen (Universidade do Novo México), Lucía Tennina (Universidade de Buenos Aires), Lúcia Osana Zolin (UEM). O corpus das análises é a literatura brasileira contemporânea, mas o seu escopo tem a natureza glocal do século XXI, dando mostras de que as cidades são mais que cenário de narrativas, canções, poemas e vidas – são entidades políticas, sociais e culturais em constante redesenho, devido ao trânsito e ao discurso dos sujeitos.

Os assuntos são diversos: literatura marginal, autobiografia e migração, crise da masculinidade, autoria feminina, escrita do cárcere, representatividade das vozes de mulheres na periferia, o espaço urbano de Brasília, o deslocamento como estratégia narrativa e reflexo da instabilidade do sujeito, os atores políticos em jogo na definição do sistema literário. A essa diversidade temática corresponde, porém, uma mesma preocupação estética e crítica com a potência do texto literário para a representação e a constituição das geografias sociais.

Como escreve o professor Barberena, “refletir sobre os traumas de hoje é pensar sobre os traumas do transitar”. Assim sendo, problematizar o espaço urbano na literatura contemporânea é questionar a própria noção de espaço – do local ao global, passando pelo nacional – e, portanto de fronteiras, limites, possibilidades e cerceamentos da mobilidade e do trânsito. De que modo os recursos estéticos da forma literária dão vazão a esses fenômenos do contemporâneo? De que maneiras a literatura contemporânea se transforma pari passu com as transformações do mundo, num jogo de retroalimentação? Não há resposta para isso que não seja um devir: cada um dos artigos deste livro é como uma caminhada pelo espaço (urbano) da literatura brasileira contemporânea – e este, não custa lembrar, só vai se construindo à medida que caminhamos.

Resenha por Giulia Barão

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