Um dos temas de leitura e pesquisa mais queridos da nossa diretora e editora, Betina
Mariante Cardoso, é o das relações entre culinária e literatura,
que acabou se tornando uma das interfaces e linhas editoriais da
Luminara. Literatura gastronômica, escrita de cozinha, cadernos de
receita ou diários de viagem repletos de anotações sobre as cores
e sabores do mundo: o que esses formatos têm em comum? Uma das
respostas possíveis é, sem dúvida, o elo íntimo entre escrita,
culinária e memória.
A escrita tem servido para preservar tradições culinárias
milenares, pratos típicos de determinadas regiões do mundo, formas
de preparo particulares a certos grupos sociais, mistura de
ingredientes que só existem em alguns rincões do mundo. Por meio da
palavra, os sabores se perpetuam. Isso também é verdadeiro para o
nível familiar: são raras as famílias que não possuem o livro de
receitas de uma avó ou bisavó, passado de geração a geração
como um tesouro. Seja na preservação e disseminação de tradições
e particularidades culturais, seja na transmissão de práticas
familiares, o central na escrita culinária é a memória.
Não o registro da história, com seus fatos e dados objetivos, mas
aquilo que há de sensível e afetivo em cada forma de preparo, em
cada alimento, em cada festa gastronômica, em cada cena de almoço
familiar. A proximidade entre cozinha e literatura passa, portanto,
por essa necessidade de registrar o afeto, a sensibilidade. Este
“mais além” contido em cada vivência, em cada sabor e cada
cheiro. Como escreve Betina, em seu “Pequeno Alfarrábio de
Acepipes e Doçuras”, publicado pela Luminara em 2012: “na
leitura da escrita culinária, a partilha atinge o imaginário de
cada um com substâncias poderosas: o prazer, a memória dos sabores,
o despertar dos sentidos, os afetos ligados a gostos e texturas de
toda nossa vida, e, por fim, a aproximação com nossos comensais (p. 94 - 95).”
Mais que um livro de receitas, o Alfarrábio nos transporta para um
espaço familiar e afetivo. Estão registradas ali, memórias que
fazem parte de sua vivência com a cozinha, de casa e de diversos
lugares do mundo. Entre narrativas de caráter autobiográfico e
prosa ensaística, se destaca a relação com as avós, Léia e Alda,
de cujas mãos Betina herdou muito da sensibilidade com que se
entrega à alquimia da culinária e da escrita. Uma das curiosidades
familiares que mais chama atenção para o elo entre literatura e
culinária, é a da Vô Alda, que ao terminara a anotação de cada
receita escrevia “FIM”, como se estivesse mesmo, contando uma
história.
Também estão reunidos no Alfarrábio alguns dos textos publicados
por Betina no blog Serendipity in cucina,
que segue no ar há quatro anos. Ali encontramos mais um pouco do
amor da diretora da Luminara ao universo das letras e dos aromas,
dedicação antiga, da qual também surgiu o projeto de Mestrado que
nossa ela desenvolve atualmente no Programa de Pós-Graduação em
Letras da PUCRS.
Por uma dessas ocasiões de serendipity com que o universo
costuma nos presentear, de 21 a 23 de setembro deste ano ocorrerá na
Universidade de Santiago de Compostela um evento intitulado “Língua,literatura e gastronomia entre Itália e Península Ibérica”.
Betina Mariante Cardoso teve sua proposta de comunicação aceita
para este congresso, e falará sobre os elementos afetivos, culturais
e memorialísticos ligados à culinária na obra “Lo que hemos
comido” (do original em catalão “El que hem menjat”)
de Josep Pla. Neste livro, o autor desenvolve uma série de
recordações biográficas, associadas à cozinha típica
mediterrânea da província de Girona, onde nasceu. Não só o corpo
vive, cresce e se transforma a partir do que consumimos, também os
afetos se realizam através dos cinco sentidos, constituem-se a
partir daquilo que absorvemos do mundo ao nosso redor. Em palavras
atribuídas a Pla: “a cozinha é a paisagem posta na panela” -
apreciar uma receita também é usufruir do espírito de cada
cultura, da memória de cada lugar.
Além de ser uma linha editorial da Luminara, uma paixão de Betina e
um tema em destaque nas pesquisas literárias contemporâneas, a
interface entre literatura e gastronomia é nossa sugestão de
leitura da semana. Além do livro de Pla e do Pequeno Alfarrábio,
deixamos como dicas ao leitor que quer se iniciar nessa deliciosa
jornada as crônicas culinárias de Nina Horta.
Bom apetite!
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